quinta-feira, 30 de junho de 2011

Conto - Literatura Japonesa III

Este foi o trabalho que mais gostei de fazer em 4 anos de faculdade! Foi algo que eu realmente me dediquei e fiz com paixão! No fim, acho que "escrever" é o que eu mais amo fazer na vida XD

Decidi compartilhar o conto aqui, pois temo mais de milhares de testemunhas e arquivos que comprovam que fui EU quem escreveu ;D


Sobre o fio da memória
途切れた記憶の糸を繋げる

Ariane Cleômenes Rocha

O sol brilhava intensamente, seus raios tocavam os gélidos cristais congelados numa leve carícia, incapazes de romper as densas camadas atmosféricas e deixando que o calor contido neles se esvaísse antes de tocar o chão. Todo o mundo parecia estar adormecido embaixo da grossa camada de gelo que cobria a superfície.

 Sob este mundo silencioso, um baixo suspiro parecia um urro. As mãos maiores se atinham às curvas do corpo menor sob o seu próprio, aquela doce e única fonte de calor em um rigoroso inverno... A pele tão macia permitia que as mãos escorregassem sem qualquer esforço, tocando, apalpando enquanto os corpos se chocavam numa cadência rítmica.

Os corpos suados e tão próximos na escuridão quase cega daquele antro, trocando calor enquanto produziam gemidos inaudíveis contrastavam drasticamente com o frio e a claridade intensa do lado de fora, dando o único resquício de vida ao mundo morto. Com os olhos abertos, porém sem conseguir enxergar o rosto diante do seu, o homem imaginou como seria poder tocar os cabelos – outrora – tão longos de sua amada, passar os dedos por eles e sentir os sedosos fios brincando entre eles. Os lábios dele procuraram os dela em cumplicidade e paixão, unindo-se para partilhar um último beijo e abafar o som do ápice. Exaustos, permitiram que a escuridão os levasse.

Naquela cova escura e úmida, tornava-se impossível precisar – mesmo que por alto – o tempo que havia se passado até que finalmente o rapaz tomasse a decisão de se levantar e pôr as maltratadas roupas que lhe cabiam. Ao sair, precisou levar um dos braços em frente aos olhos, devido à claridade exterior, assim que se acostumou, buscou pela mulher que não estava muito adiante. Ela, reparando que ele a olhava e vinha em sua direção, lançou-lhe um sorriso amplo, como se lhe desse boas-vindas. Diante daquele pequeno, mas tão espontâneo gesto, o rapaz prendeu a respiração, esperando que a miragem diante de si desaparecesse. Esperou, mas o sorriso continuava radiante e em resposta, sorriu, igualmente espontâneo, para ela.

Juntos, procuraram pelos últimos resquícios de comida que poderiam estocar até que um deles pudesse descer a montanha em busca de alimento no vilarejo mais próximo. Naquele ano o inverno estava sendo mais rigoroso do que em anos anteriores. A comida – já escassa – dificilmente iria durar até o degelo se não a racionassem bem. No trajeto de volta à caverna, a mulher tossiu em intervalos não regulares, porém freqüentes. Dizendo ao amado que apenas estava cansada, ambos penetraram novamente a cova.

Os dias se seguiram e, apesar de descansar, a mulher não melhorava. O rapaz por diversas vezes deixou de fazer as refeições, oferecendo a própria parte a amada imaginando que se ela se alimentasse mais, logo melhoraria. Contudo, por mais que rezasse, implorasse a Deus que a curasse, podia sentir na voz feminina que ela definhava. Quando suas mãos a tocavam, sentia seus ossos e, a voz melodiosa e tão cativante, agora não passava de um guincho pavoroso na escuridão.

Em algum momento – sem saber se era dia ou noite – o homem desabou. A voz carregada e rouca praguejava contra aquele infortúnio, implorava à mulher que se curasse, as lágrimas cobriram seu rosto enquanto chorava de forma copiosa, chegando a soluçar. Ela, afetuosa, mesmo deitada e tão debilitada, estendeu o braço até que as pontas de seus dedos tocassem o braço dele. Imediatamente ele se calou, engoliu o choro e forçou-se a ouvir a voz baixa – quase inaudível – da amada.

Meu amado... Por favor... não chore... Nesta... nesta vida... eu partirei primeiro... E... é de meu desejo que você... Por favor... faça o que precisar para sobreviver... Sobreviva...”.

Aquelas palavras, pronunciadas com tanto esforço e dedicação, foram as últimas que deixaram os lábios pequenos e doces. O homem não encontrou forças sequer para derramar mais lágrimas por aquela mulher, empalidecido e mudo, permaneceu estático olhando o escuro. Ouvia seu próprio coração batendo de forma cadenciada e a respiração falha. No breu, ouvia apenas a si mesmo, em uma espécie de estupor.

Perdido em seu próprio tempo e espaço, não foi capaz de se dar conta do que acontecia no mundo real. Lembrava-se vagamente de ter arrastado algo pesado para o mar branco e de sentir suas mãos queimarem como se tivessem sido amarradas próximas demais ao fogo. Lembrava-se de sentir a dor e de ter os olhos fixos em um ponto exterior, o chão não uniforme tão belamente tingido de um branco puro amarelou-se da cor do ouro antes de se tornar um vermelho vivo. Aquele tom tão magnífico parecia escorrer e, pela primeira vez, viu a entrada, no interior da caverna onde ele se encontrava, ser pintada com uma cor diferente do negro.

Os olhos do homem arregalaram-se e os lábios se partiram em uma espécie de assombração e espanto admirado. Seu corpo exausto, machucado e monstruosamente faminto pareceu perceber o fio de consciência de seu dono e mandou sinais de seu completo desespero e abandono. Sem forças para se erguer em duas pernas, arrastou-se lentamente até a entrada, expondo uma das mãos aos raios do sol ao entardecer, seus longos dedos tinham as pontas finas e a carne de sua mão quase deixava de existir. Ergueu-a até a altura dos olhos como se aquela fosse a primeira vez em anos que a notava. Horrorizado diante daquela realidade tão palpável e cruel, sentiu o ardor do rugido sair de suas entranhas até que fosse expelido por entre os lábios em um grito violento. O corpo estremeceu, não mais pelo frio, mas pelo simples pavor de ver a caveira diante se si. Arrastou-se, tão rápido quanto seu debilitado corpo lhe permitia, de volta para dentro da caverna, protegendo-se no escuro onde nada poderia ver novamente.

As mãos tocavam uma na outra, como se tentassem apagar sua real situação. Havia começado a falar sozinho até perceber que seus lábios não se moviam, seus olhos pareciam poder ver muito além do que antes, via o vulto de negro se aproximar e sentiu o cheiro fétido da morte ao seu lado. Virou-se para o outro lado e o rosto de uma mulher de cabelos raspados surgiu diante do seu, a proximidade fazia com que os lábios um do outro chegassem a se tocar. Ela sorriu, um sorriso sereno e belo, depois, seus olhos se arregalaram e afundaram, seus lábios se esticaram de uma orelha a outra num sorriso macabro até que nada mais de pele restava em seu lindo rosto, apenas o rosto da caveira que riu.

Com uma desesperada força repentina, seu corpo se ergueu e correu para fora. Os últimos resquícios de dia ainda estavam presentes quando tropeçou em algo grande e foi ao chão. Sentiu o rosto doer por tê-lo batido na queda e apoiou uma das mãos na neve para que pudesse levantar, escorregou e, mais uma vez, bateu com o focinho no gelo. Com a cabeça levemente tombada para o lado, viu o corpo diante de si e afastou-se alarmado.

Ofegante, as imagens demoraram a entrar novamente em foco para que pudesse ver o que ou quem estava caído ali. Não foi com espanto que seus olhos estavam diante da mulher de cabelos raspados. Seus olhos negros estavam abertos e parte de seus ombros estava cheio de escoriações por ter sido arrastada sem qualquer cuidado, a pele, antes somente branca tão próxima a cor da neve agora tinha um tom puxado para o azul.

Faça o que precisar para sobreviver...”. Foram as palavras que vieram a sua mente quase que instantaneamente. Aquela mulher... Lembrou-se de tê-la amado como a mais ninguém, de seu corpo quente tê-lo aquecido em dias em que o frio era governante. Aproximou-se dela, engatinhando. Havia uma pedra grande próximo ao seu corpo morto, era grande e tinha apenas um nome como inscrição “Airi[1]. Olhou para o nome de sua tão amada dama e depois para ela, seus olhos pareciam de vidro como os de uma boneca de porcelana. Suas últimas palavras voltaram a martelar na mente do homem “Faça o que precisar para sobreviver...”, uma, duas... três, dez... vinte vezes de forma que repetia-as como um servo de Deus repete seu mantra. Daquela forma, Deus havia mandado um sinal, uma maneira de sobreviver.

As mãos do homem agarraram a pedra e não hesitou em acertar o cadáver tão próximo a si. Acertou-a no rosto por diversas vezes sem parar, os olhos fixos no que fazia ao desfigurá-la sem hesitação ou remorso, apenas com suas últimas palavras em mente. Quando aquele corpo não mais possuía um nome ou mesmo uma figura, não podia mais pertencer a ninguém.

Debruçou-se como um animal sobre a presa abatida e arreganhou os dentes antes de cravá-los ferozmente em um de seus seios. A necessidade de alimentar-se misturado ao pavor da morte e ao mantra que recitava, fez com que arrancasse parte daquele pedaço de carne, que outrora provavelmente seria mais macio e fresco, sem hesitação. Enquanto sua boca ocupava-se em mastigar o pedaço que lhe cabia, as mãos que antes tocavam aquele corpo de forma tão gentil e carinhosa agora procuravam arrancar pedaços interioranos pela nova abertura, devorando-a até que se sentisse satisfeito.

Quando o degelo se fez presente, desceu ao pé da montanha até a pequena vila que se instaurara lá. Os moradores não pareciam surpresos com sua presença desgrenhada e suja, para eles provavelmente o rapaz era apenas mais um andarilho. Procurou por abrigo e comida, tomou um demorado banho como há tanto tempo não fazia, fez a barba e penteou os cabelos. Quando se olhou no espelho, sorriu. Sua aparência não era de um rapaz novo, mas ainda sim estava bonito e parecia absolutamente vivo.

Saiu da estalagem trajando roupas novas, não ricas, mas em bom estado, agradeceu pela hospitalidade e olhou para o céu aberto. O sol brilhava com muito mais intensidade do que podia se lembrar em qualquer dia de sua vida, espantando qualquer resquício de sombra do passado dentro daquela caverna. Não havia nada o que temer enquanto tivesse aquelas palavras consigo, palavras estas pronunciadas em um sussurro cálido por uma dama sem rosto “Faça o que precisar para sobreviver”.


[1]

1 comentários:

Aline disse...

Finalmente terminei de ler XD
:O Achei muito bom! E inesperado. Gostei *-*

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